Desafios do Peticionamento em Tempos de Processo Eletrônico

Apresentação feita no XXXVII Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), em 29 de maio de 2015.

O modelo de construção do processo judicial mudou ao longo da história. Cada nova tecnologia foi absorvida vagarosamente, na medida em que se firmava a confiança dos operadores sobre sua adequação ao meio judicial. Da caneta tinteiro para a máquina de escrever, passando pelo fax e telefone. Todos foram recursos que, em menor ou maior grau, impactaram a forma de produzir justiça nos tribunais. Mas mesmo com tantos avanços um elemento permanecia inalterado: o papel. 

Nem mesmo os computadores e a internet mudaram esta realidade. Durante duas décadas as máquinas adquiriram cada vez mais relevância para a execução de atividades judiciais, aprimorando a gestão de dados e a produção de documentos. Mas ele ainda estava lá. O impassível papel. Afinal, grande parte (ou tudo) o que era produzido nas máquinas terminava impresso e empilhado em incontáveis volumes. 

A internet, por sua vez, ampliou o acesso as informações básicas e andamentos dos processos. Mas sozinha também não foi capaz de eliminar as folhas, pois o entendimento é que informações prestadas via internet são apenas informativas, não possuem caráter oficial. Ou seja, divulgação de dados errados não é causa suficiente para reabertura de prazo. Portanto, desconsiderando tempos muito remotos, o papel sempre foi o suporte básico no qual estavam calcadas as atividades jurisdicionais. 

Em 2003 iniciamos a substituição desse suporte físico milenar. A combinação de processamento computacional, internet e tecnologias de segurança permitiu o nascimento do processo judicial eletrônico. Certamente um dos pontos mais festejados e impactados desta nova realidade é a forma de peticionar. 


Não é mais necessário que servidores públicos recebam a papelada pessoalmente, verificando a coerência da petição e dos documentos. Agora a máquina intermedia essa troca. Folhas de papel, assinaturas e carimbos agora são impalpáveis pacotes de dados. Do balcão para os algoritmos. 

E o que acarreta passar a organização dos autos para os computadores? Que novas possibilidades se abrem para aprimorar a prestação jurisdicional?

Fato é que com o peticionamento via internet ocorreu um deslocamento do esforço de estruturação dos dados que compõem o processo. Agora são os peticionantes que, por meio dos dados e regras do sistema, determinam parte do andamento processual.

Neste cenário não basta apenas o que está escrito na petição. Parte do que está literalmente na peça inaugural precisa ser repetido de forma estruturada para o sistema de gestão. Somente assim é possível automatizar atos e, mais do que isso, cumprir a lei.

Apenas dois exemplos. O artigo 10 da lei 11.419 indica que  a distribuição da inicial e a juntada de petições nos autos de processo eletrônico, podem ser feitas diretamente, sem necessidade de intervenção do cartório. A autuação deve ocorrer de forma automática.
Da interpretação do texto fica clara a exigência para que o peticionante informe, no mínimo, o juízo e a classe, de maneira que o sistema, de acordo com as competências do tribunal, possa realizar a distribuição do feito.

Outro exemplo, a correta identificação das partes. Também é requisito essencial para que outro trecho da mesma lei seja cumprido. Parágrafo único do artigo 14: “os sistemas devem buscar identificar os casos de ocorrência de prevenção, litispendência e coisa julgada”. Não há como deixar a cargo do sistema a identificação de  tais circunstâncias se para ele não forem fornecidos dados adequados.

Na verdade essa mudança estrutural no formato de peticionamento possibilita muito mais. O cadastro adequado de pessoas físicas e jurídicas pode facilitar tarefas como a citação, permitindo a expedição automáticas de cartas. 

Fica dispensada qualquer intervenção humana após o despacho inicial, até o retorno dos correios. Mesmo depois que a carta é devolvida ainda pode haver produção automática de atos. Como a emissão de um mandado ou edital.

Mas assim como a estruturação de dados traz inúmeras possibilidades, também pode acarretar tumulto processual caso seja mal utilizada. Vejamos algumas situações para ilustrar essa afirmação. 
Imaginemos que o sistema permite ao peticionante a indicação da existência de réu preso, prioridade ao idoso, doença grave ou pedido de liminar. São todos elementos que, se inconsistentes, podem alterar a tramitação, influenciando a prioridade do processo em relação a tantos outros que estão sob responsabilidade do mesmo magistrado. 

Da mesma forma que podem ocorrer erros involuntários, não há dúvida de que tais inconsistências pode ser usadas como subterfúgios por partes e procuradores mal intencionados. Os peticionantes precisam estar atentos e serem responsáveis pela adequação dos dados enviados. Por outro lado, o judiciário precisa averiguar a natureza das falhas destes operadores.

No processo eletrônico é preciso uma nova leitura do que são erros formais, que não ensejam a anulação de atos. Necessário sempre mensurar a gravidade da falha. 

É justo extinguir o processo sem julgamento do mérito porque uma página foi enviada invertida? Ou, quem sabe, classificada de forma errada pelo peticionante? Creio que não, pois tratam-se de problemas contornáveis que, se apreciados de forma tão rígida, podem afetar um direito sob ameaça iminente.

Mas tolerância requer monitoramento. O reiterado envio de dados inconsistente deve ser detectado e combatido, pois causa transtornos na gestão processual, afetando negativamente todo o fluxo de trabalho do órgão. 

Por esta razão é importante que sejam formuladas regras que disciplinem o uso e imponham responsabilidade para os operadores. Em paralelo, a usabilidade dos sistemas também demanda constante estudo e aprimoramento. Trata-se de uma forma efetiva de minimizar problemas decorrentes do envio de dados inconsistentes.

A necessidade de intervenção humana em tarefas burocráticas é inversamente proporcional ao nível de estruturação e tratamento dos dados. O novo processo judicial está repleto de possibilidades antes impensáveis. 

Precisamos ser arrojados e aproveitar as potencialidades oferecidas pela tecnologia. Desde facilidades para a produção de documentos, passando pela execução de atos simultâneos no processo, até a integração com outras instituições. Mas tudo isso depende de estruturação!

Se nesse novo ambiente as possibilidades são muitas, em contrapartida as regras mudam com mais frequencia. E aí está algo desafiador para justiça. Aproveitar os novos recursos e ao mesmo tempo decidir sobre situações de cunho tecnológico, quando dados e regras dos sistemas afetarem algum direito.

O uso da tecnologia abre um novo mundo para os operadores do direito, que necessita audácia e constante consideração sobre seu impacto nas relações processuais. 

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